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Diário de uma Artista no Pensionato
14/06/2023 13:31 em Notícias Gerais
MAGNA CAMPOS 
Especial
 
Intimidade ou intimista? O que mostra a escrita de um texto literário que se propõe ser um diário? Revelar, rememorar, reelaborar, elaborar, inventar, reinventar ou hibridizar tudo isso ao mesmo tempo? Afinal, não se trata de um diário qualquer, mas um diário de uma artista.
 
E se tem uma coisa que uma artista versátil como Andreia Donadon Leal soube fazer aqui é nos enredar em histórias recheadas de nuances neste livro, na qual as pessoas (ou seriam as personagens?) vão nos "entregando" suas histórias e reflexões mais íntimas como se apenas fossem registros de ocorridos em algum momento de suas vidas, quando na verdade, estão nos contando de possibilidades: de memórias reais ou criadas, de pessoas reais ou criadas, mas que ambas conseguem dar a impressão de autenticidade e de veracidade, dificultando magistralmente nossa capacidade de saber o que é memória e o que é invenção?
 
Mas a memória em si também não seria criação? Olhar para o passado de uma perspectiva já inundada pela experiência presente não seria se recontar sobre algo acontecido e não mais o acontecido como se deu? E as memórias e reflexões aqui dispostas não estariam todas, não importa a boca que a manifeste na história, se real ou ficcional, no fundo, falando das mesmas coisas: do amor, da luta pelo direito de ser e da recusa à solidão destinada?
 
Não é o amor quem levou, de fato, a aluna para o altar, em um rito mais agilizado, quando professor e aluna se entregam inteiramente a um romance que não é capaz de ser medido pelo tempo de existência, mas pela intensidade com que envolve os dois?
 
Não é amor o que tias, pais e irmãos que tentam expressar da forma como conseguem para manter os laços familiares fortes e acolhedores, indiferentemente à situação.
 
Não é o amor que também deixa partir sem algemas e leva a artista a experimentar um microcosmo em uma pensão na capital, para se curar dos próprios fantasmas, sem no entanto, deixar de cravar nela a certeza do retorno quando fosse o momento?
 
Não é o amor que move aquela pensão dia após dia, nos amores possíveis ou não revelados que precisaram ser ditos ou mostrados, para espantar o destino solitário a que se podia render cada um dos residentes daquele lugar. Suas participações no diário, suas perspectivas não trazem em si a recusa à solidão, à rejeição e a luta pelo direito de ser?
 
Um artista luta para voltar a ser ela e seus próprios sentimentos, longe de alucinações que a atormentavam, e que desviavam do professor a atenção e o amor que merecia. Luta para voltar a sentir o calor no coração lhe aquecendo e não apenas o frio corroendo seus ossos. Luta para não morrer dentro de si mesmo.
 
O estudante de jornalismo, com sua irreverência, luta pelo direito de ser e de estar onde quer e precisa estar. E sua luta estampa, no final das contas, a total fraqueza dos brutos que lhe extinguiram a vida e grita mais alto que ele sempre se ajustou a si mesmo e não ao mundo, pois essa era a sua verdade. E essa foi sua maior prova de resistência!
 
Mas sua morte não foi em vão, a senhorita o dignificava em vida e também na morte com o afeto e cuidado maternal que lhe for a negado pelos próprios pais. E o faz presente, por meio de suas cinzas, que tiveram acolhida em seu jardim, mostrando a todos que aquele era de fato o seu lar e que ser autêntico em um mundo de padrões e de fingimentos era uma ousadia imensa.
 
E o professor? Não é a luta silenciosa dele em promover o que o encantava na mulher que ajudou a construiu os laços fortes que os uniram, na saúde e na doença, e o que a trouxe de volta?
 
Esse é o quadro maior pintado pela artista ao final deste livro, não suas pinturas em tela ou seus textos, não de sua depressão ou do reencontro, mas o conjunto de fios que se juntam para narrar uma existência, a da aluna-artista-esposa, e junto dela porções de várias outras histórias, as quais não poderiam se dar a ver por outro meio que não metonimicamente. No fim, a aula sobre signos dada em um dos relatos, é o que se faz presente. Interpretaremos ou significaremos esse diário com o que houver de referência dentro de nós, as porções estão dadas, sequer recebem nomes para serem ainda mais potencializadas. Se são reais ou não, são possibilidades que coexistem.
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